quarta-feira, 11 de novembro de 2009


TPC e estudo são a mesma coisa?
Maria José Araújo*| 2009-09-23

Quando me refiro ao excesso de TPC, estou a referir-me às contas, tabuada repetida, cópias e fichas que as crianças mais pequenas levam para fazer depois da escola, mas também ao excesso de trabalhos que são uma repetição do que se fez na aula e, ainda, às actividades que são mais aulas depois das aulas.


Estudar tem de ter a adesão voluntária das crianças. Deve ser algo que elas percebam e por que se interessem. Perceber que conhecer, aprender e ter a possibilidade de participar no mundo de uma forma informada é algo estimulante, e as crianças gostam deste sentimento. Estudar é perceber mais e melhor... não é repetir o que os adultos impõem.

O conceito de estudar é muito confuso para as crianças e elas só o vão percebendo com o decorrer da escolaridade e à medida que se vão confrontando com outras situações -como, por exemplo, estudar a tabuada, estudar para um teste - e, mesmo assim, tudo isso depende delas. A função de estudar, não sendo uma operação muito concreta, é algo que não é muito claro para as crianças nem, provavelmente, para os adultos com quem convivem.

As crianças têm múltiplos interesses que são desprezados em função da 'matéria escolar'.

Todos sabemos disto - o que muitas vezes não sabemos é o que fazer para corrigir esta desatenção. Neste sentido, se se confundir TPC com estudar, estamos a dizer às crianças que estudar é aquele trabalho repetitivo, cansativo e mecânico que é proposto na maior parte dos TPC. É muito importante que se entenda isto, senão é o conhecimento e a própria Escola que estamos a desvalorizar.

A maior parte das crianças não gosta de fazer 'trabalhos de casa', mas aceita a obrigatoriedade da tarefa mais ou menos pacificamente. Outras, contudo, manifestam-se: É uma seca... Tenho de estar sempre a escrever... cansa a mão... Já estou cheio (...). Este sentimento alarga-se às educadoras do ATL, quando referem: estamos para aqui a ajudar as crianças, conscientes de que não sabemos ensinar. Os métodos são diferentes e se as crianças não sabem, deviam aprender na escola (...) Mas não é assim (...) quanto menos sabem mais trabalhos trazem para fazer..... É muito cansativo.... Apesar das dificuldades (não sabem fazer ou estão cansadas após um dia na escola), os 'trabalhos de casa' aparecem sempre como alguma coisa que faz parte dos seus quotidianos, que está naturalizada e que, portanto, não se questiona - (...) temos de fazer todos os dias e muitos... Ou cuja realização é condicionada pelo medo - se não fizer a minha professora ralha-me (...). Convém salientar aqui que as crianças, quer tenham 6, 7, 8, 9 ou 10 anos de idade, têm a mesma quantidade de tempo ocupado com obrigações escolares, independentemente do seu tamanho, ritmo ou contexto de vida.


Há, como sabemos, muitas formas de aprender e de ensinar, como há muitas de estudar. O acto de estudar, como de ler, não é de fácil ensino. Para ajudarmos as crianças a perceber o que significa estudar, qual o significado de estudar, é preciso respeitar algumas regras que se prendem com o ritmo de cada criança e com a forma que cada um arranja para satisfazer a sua curiosidade. As crianças são todas diferentes e, portanto, têm formas diferentes de se adaptar e se interessar. Assim, aplicar uma 'receita' igual a todas, mandá-las ler e repetir, não é de modo algum a melhor forma de elas se familiarizarem e começarem a perceber o acto de estudar. Algumas crianças gostam de procurar informações sobre matérias que lhes suscitaram curiosidade, gostam de escrever coisas e são muitos perspicazes. Tudo depende das matérias e das crianças. Se o intuito de algumas propostas dos TPC é treinar a memória, há também muitas formas de as crianças o fazerem que não passam pelo exercício repetitivo, como é o caso de repetir palavras e números várias vezes até decorar. Desenvolver e treinar a memória é o que as crianças mais fazem no seu dia-a-dia. Não precisamos de pedir às crianças que se interessem por um jogo de futebol e decorem as regras escrevendo vinte vezes numa folha de papel, pois elas já o fazem sem disso precisar. Elas fazem-no à medida que se vão confrontando com a necessidade de saber, ou seja, quando jogam ou quando vêem jogar. Fazem-no sem custo porque é uma actividade que lhes interessa e, portanto, aderem a ela. E, ao aderir, estão a memorizar e a treinar. Mas mesmo as crianças para quem este tipo de jogo não é tão interessante acabam por aprender ou vão perguntando quando têm uma dúvida. O mesmo podíamos dizer para as canções da moda, marcas de automóvel, grupos musicais, um jogo de xadrez ou muitos dos jogos electrónicos que exigem das crianças competências muito complexas e elaboradas. Um outro exemplo é o fenómeno Pokémon - que suscitou estudos, não só de Gil Brougère1 e de Paul Gee2, entre outros, para perceber como é que as crianças que tinham problemas com a aprendizagem conseguiam de forma tão eficaz saber, memorizar e perceber todo o sistema de personagens. São mais de duzentas figuras em diversas cores, que aparecem representadas em cartas, vídeo, bonecos de plástico, filmes, jogos electrónicos, etc., e que 'obrigam' as crianças a aprender e decorar todas as suas diferentes formas, nomes e competências. Cada personagem tem cerca de 16 tipos diferentes, com diversas funções, acompanhadas de outros tantos sons que formam um sistema muitíssimo complexo, que as crianças desde muito cedo aprendem sem qualquer dificuldade. Mas o que acontece com este jogo acontece com muitos outros. Neste sentido, precisamos de compreender que também as propostas de trabalho que exigem estudo e esforço têm de ser sentidas pelas crianças como verdadeiramente importantes e suficientemente interessantes para que a elas adiram com vontade e para que as valorizem, para que as trabalhem com gosto. Caso contrário, mal comecem a ter alguma autonomia, deixam o estudo aprofundado de lado e fazem somente o mínimo necessário para passar de ano. É neste sentido que não se pode confundir TPC e estudo. Quando se obriga a memorizar e repetir, estamos a impor uma concepção já programada e raramente as crianças aprendem a pensar, a pôr em causa, e isso não as ajuda a perceber e ficar com vontade de continuar. O que se propõe com muitas situações de jogo é a possibilidade de produzir, mudar e conceber novas formas de fazer/jogar. Isto, aliás, acontece com os estudantes de qualquer nível de ensino e até com os adultos. Não raras vezes ouvimos dizer que os estudantes 'decoram e vomitam matéria', sem saber nada. O que, sendo um exagero, é já de algum modo uma forma de se denunciar este tipo de concepção do conhecimento.

*Bolseira da FCT
Investigadora do CIIE/FPCVE
Universidade do Porto



Araújo Maria José (2009). Crianças Ocupadas. Lisboa: Prime Books.
1 Brougère, Gilles (2004).
Brinquedo e Companhia. S. Paulo: Cortez Editora/Brougère, Gilles (2008). La Ronde dês Jeux et dês Jouets.
Harry, Pikachu, Superman et les autres. S. Paulo: Cortez Editora.
2Gee, J. Paul (2007).
Situated Language and Learning. A Critique of Traditional Schooling.London: Routledge.


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No próximo Boletim daremos nota de um novo artigo desta investigadora ao Educare.

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