terça-feira, 19 de outubro de 2010

Escandaloso que se rejeitem matrículas para ficar bem na fotografia dos rankingsl


Artigos de opinião
Membro do Conselho Nacional de Educação, Joaquim Azevedo tem uma vasta bibliografia sobre o ensino básico e secundário em Portugal. Foi secretário de Estado do Ensino Básico e Secundário entre 1992 e 1993, depois de ter ocupado o cargo de director geral do Ministério da Educação durante quatro anos. Licenciado em História e Doutorado em Ciências da Educação, é o actual presidente do Centro Regional do Porto da Universidade Católica. 
Divulgamos, pelo seu excepcional interesse, a entrevista que o Professor concedeu ao jornal Público. 

Os rankings são ou não indicadores da qualidade das escolas? 

São um contributo para aferirmos a qualidade das escolas, mas temos que enriquecer o indicador dos exames com outros indicadores, porque muitas vezes o que estamos a comparar é escolas com muito poucos alunos em exame com escolas com muitos alunos e aí há diferenças muito grandes. Outra questão ligada a este fenómeno é que há escolas – mesmo públicas – que, entre o 10.º e o 12.º ano, praticam uma selecção de carácter social e económico e, portanto, os que levam a exame são muito poucos. Dos outros alunos, dos que ficaram pelo caminho e muitas vezes abandonaram a escola, ninguém fala. É escandaloso o que se passa nalgumas escolas públicas que, por força da pressão que os rankings introduziram, começaram a enveredar por estratégias de limpeza: levam os alunos até ao secundário sem problemas nenhuns, chegam aos conselhos de turma no 9.º ano e aprovam e fazem transitar alunos com cinco e seis níveis negativos, e, quando chegam ao 10.º ano, reprovam-nos. Nós temos níveis de abandono de vinte e trinta por cento em algumas escolas secundárias, logo no 10.º ano, e isto é gravíssimo. Por isso é que me tenho batido para que se criem indicadores compósitos e para que não se trabalhe só com este indicador dos exames nacionais. 

Nesse sentido qual devia ser a política a seguir? 

Em França aconteceu um fenómeno muito semelhante ao de cá, foi por pressão dos media que se começaram a publicar os rankings, – aqui foi o PÚBLICO, em França foi o Le Monde – só que o ministério francês teve a capacidade e a inteligência de reagir e propor um indicador compósito. Actualmente, continuam a fazer-se rankings, continuam a publicar-se como cá, a diferença é que o indicador contém cinco variáveis e não apenas os resultados dos exames. Uma das variáveis fundamentais é, por exemplo, a taxa de eficácia ou de rentabilidade da escola, isto é, quantos alunos entraram no 10.º ano e quantos foram levados a exame, o que permite saber quantos ficaram pelo caminho. E é fundamental que a taxa de abandono entre ao lado da taxa dos exames do 12.º ano nos rankings. 

Parece absurdo que não se faça o mesmo cá... 

Por isso é que acho absurda esta conversa dos rankings, mais ainda porque o ministério tem os indicadores todos. Portanto, o ministério pode ver ‘nesta escola, os alunos são de um nível sócio económico baixo’ e deixar de comparar a Escola do Cerco do Porto com o Garcia da Orta, ou ir a Lisboa e comparar a escola do Sagrado Coração de Maria com uma escola da Damaia, sem atender aos contextos em que as escolas estão posicionadas. Isso é possível e faz-se de um ano para o outro. 

Mas então por que continuamos a comparar o incomparável? 

Porque a administração educacional persiste numa lógica de cegueira. Ainda por cima, bastava seguir o percurso que outros países já fizeram, não se trata de inventar nada completamente extraordinário, é criar um indicador compósito que nos permita a todos olhar para as escolas secundárias e dizer: esta escola tem um melhor desempenho, aquela não está a conseguir tanto. É que, se o indicador dos exames não for enriquecido com outros indicadores, podemos nalgumas escolas desviar o foco. E o foco não pode ser o menino que vai a exame, o foco é: eu tenho 500 alunos no 10.º ano, o que é que eu faço para levar estes 500 alunos ao melhor nível de sucesso possível? Porque isso é que é ficar bem na fotografia. O que os rankings agora fazem é perverter isto, na medida em que colocam o foco só no exame. 

Os alunos no secundário deviam poder escolher a escola? 

Quem dera que isso fosse possível. O critério da localização geográfica leva a que, na prática, toda a gente dê moradas erradas para poder escolher a escola. Mas há escolas secundárias que rejeitam matrículas. Porquê? Porque o menino reprovou imenso no básico, porque de certeza vem com um nível de má preparação e, logo no 10.º ano, as escolas começam a rejeitar matrículas para ficarem bem na fotografia do ranking do 12.º. Isto é escandaloso, é uma questão política, mas nem o Governo nem a Oposição lhe dão a devida atenção. A perversão que se está a gerar na sociedade portuguesa é brutal e ninguém liga, acho inconcebível. 

A possibilidade de se poder escolher não deixaria as escolas com pior performance sem alunos? 

Se tivermos um indicador compósito devidamente feito, as escolas com pior performance serão exactamente escolas com problemas, que não conseguem trabalhar devidamente a questão das aprendizagens e há contextos escolares onde isto é muito difícil. Temos que ajudá-las e apoiá-las, o que não é feito actualmente. Aliás, seria interessante ir às escolas que nos últimos cinco anos ficaram nos cinco últimos lugares do rankings e perguntar o que é que o ministério foi lá fazer para as ajudar a sair do último lugar. Nada, absolutamente nada. Quando houver um indicador real de performance, vamos ter possibilidade de ir junto dessas escolas e tentar puxá-las para cima. Mas isso tem que ver também com todo o problema da administração do sistema – as escolas deviam poder lutar por projectos educativos mais autónomos. Se conseguíssemos isso, se a escolas pudessem ser configuradas pelos professores e pelos pais, com o apoio das comunidades... 

...não é esse o caminho que se está a fazer no básico? 

Temos adaptações curriculares mas não há um incentivo a que as escolas tenham projectos educativos autónomos e diferentes, porque a autonomia em termos administrativos e financeiros – gerir um orçamento, ter capacidade de contratar professores – não existe. 

Por que é que todos os anos as escolas privadas ganham terreno às públicas? 

Estamos a cair num lamaçal perigoso: as escolas públicas são as escolas de ocupação social dos meninos e as escolas privadas são as escolas que ensinam os meninos. Isto é uma coisa perigosíssima, nomeadamente para a escola pública. Mesmo as pessoas que se dizem arautos da escola pública e escrevem livros sobre isso, não põem sobre a mesa esta questão brutal que levará a que, qualquer dia, a escola pública seja o lugar onde se faz a ocupação social dos meninos porque é melhor tê-los numa escola do que na rua. 

Foi essa a lógica que presidiu à aposta nos CEF e nos cursos profissionais... 

Quer os CEF quer os cursos profissionais, pela maneira avassaladora e repentina como foram introduzidos nas escolas secundárias e os CEF também no básico, vieram criar um clima que estava à vista claríssima que não ia dar bom resultado, na medida em que foram introduzidos a uma velocidade que era incompatível com qualidade. Hoje, uma boa parte dos que abandonam e reprovam são esses alunos dos cursos profissionais e dos CEF no secundário – no básico é ligeiramente diferente. O que está a acontecer no básico e está a passar para o secundário é que há escolas que tratam da ocupação social dos meninos com níveis de insucesso muito elevados e depois temos as outras – onde as privadas, embora não só, pontuam – que são as escolas dedicadas ao ensino e onde se ensina e se aprende direitinho. 

Como olha para a diminuição dos chumbos nas escolas? 

Admito que haja, do ponto de vista burocrático, algumas dificuldades em reprovar um aluno – e é evidente que reprovar um aluno deve ser um problema educativo –, agora as reprovações permanecem e são duríssimas, aliás, atingem proporções incríveis, nomeadamente no 10.º ano. Conseguimos fazer uma coisa de facto extraordinária nestes 36 anos da III República que foi trazer à escola todos os alunos com 15 e 16 anos. Vamos agora tentar fazer o mesmo até aos 17 e 18. Já conseguimos pré-escolarizá-los também: aqui já chegámos a [uma taxa de cobertura] 74 ou 75 por cento. No Ensino Superior, a mesma coisa notável. O drama é que ali no meio, naquilo que fica entre o 5.º e o 12.º ano, não estamos a ser capazes de ter respostas de qualidade para cada um. 

Tem havido algumas tentativas de diferenciar as respostas. 

A questão não é se o ministério diferencia. Os ministros e o ministério importam pouco, porque as medidas nacionais existem. O que importa é a prática das escolas e se elas estão a fazer isso, se estão a apoiar cada aluno com dificuldades de aprendizagem através de mecanismos de forte incentivo. Ainda no outro dia falava que o Porto tem 200 adolescentes, alguns quase crianças, que por ano não têm qualquer resposta educativa, abandonam as escolas e não há centro de formação profissional que lhes dê resposta. Ora, isto acontece porque nós não estamos a olhar para onde devíamos. Os cursos CEF são uma resposta, mas como é que todos os anos caem da rede social estes 200 adolescentes? Como é que é possível? Todo o ser humano é educável e tem capacidade de se desenvolver, o que é preciso é criar o ambiente educativo propício. Claro que isso exige muita capacidade criativa, mas ela existe entre os professores, desde que os deixem trabalhar e lhes dêem autonomia para construir essas soluções. Mas não, parece que preferimos ter estes miúdos na rua e andar a pagar depois mais polícia, mais sistemas de controlo, mais videovigilância. É uma opção social. 

15.10.2010 - PÚBLICO Por Natália Faria

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