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Suzana Ralha, uma das fundadoras da Escola dos Gambozinos, afirma que se fala imenso em educação em Portugal, como se o ensino fosse uma "grande empresa". Na sua opinião, há assuntos importantes na área educativa que não são abordados convenientemente.
Leia esta tão desassombrada quanto deslumbrante entrevista.
"A arte é uma ferramenta do indivíduo e da sua comunidade". Suzana Ralha, da Direcção da Escola dos Gambozinos e uma das fundadoras da instituição, com quatro casas na Rua de Francos, no Porto, refere que a educação pela arte significa uma aprendizagem muito mais abrangente porque "não moraliza, não conceptualiza". A escola que dirige acolhe crianças dos 3 anos ao 5.º ano de escolaridade, mais alunos interessados em aprender música.
Na sua opinião, há assuntos importantes na área educativa que não são abordados convenientemente. Como a função da escola, por que razão se definiu a escolaridade obrigatória, porque é importante a alfabetização. Segundo Suzana Ralha, professora de Música, as atenções centram-se mais na "engenharia do ensino", nos horários. Discute-se mais como se faz e não tanto o que se faz.
Na escola que conduz, privilegia-se o contacto com a arte, a interligação entre as diferentes disciplinas. Os professores têm uma reunião semanal para trocarem experiências e opiniões. "A interligação íntima das actividades, da forma como cada professor se exprime, não existe", sublinha. Gostava de ter uma experiência educativa a tempo inteiro e, nesse sentido, alimenta a vontade de abrir uma escola para órfãos.
EDUCARE.PT: Educar pela arte. Portugal já acordou para as potencialidades deste tipo de ensino?
Suzana Ralha: Já acordou para esse tipo de ensino. Para as suas potencialidades, tal como eu as encaro, penso que não.
E: O que falta?
SR: Quando o trabalho dos "Gambozinos" iniciou, só um determinado tipo de famílias entendia a arte como um ingrediente fundamental da educação das crianças. Felizmente, essa situação está completamente alterada. Hoje a maioria das crianças faz música, dança, teatro - inclusive as escolas têm essas actividades inscritas nos seus currículos com regularidade.
A música é uma actividade que tem dois aspectos: a componente educativa, fundamental na educação de uma criança, e a possibilidade de uma via profissional. Existem, com mais frequência, dois tipos de instituições. As que trabalham numa perspectiva profissionalizante desde que as crianças são pequenas, em alguns casos com conteúdos discutíveis que são ministrados aos miúdos, quase uma "infatibilização" do que é suposto fazerem mais tarde. Ou então fazem-se coisas que tenham um objectivo muito recreativo, em que o importante é que os miúdos se sintam bem, que gostem, mas não há uma definição de um percurso e de uma capacidade de avaliação sob um ponto de vista formativo. Em meu entender, uma coisa não deve ser incompatível com a outra.
Os "Gambozinos" não existem para formar músicos, mas muitos músicos foram formados nesta escola. O trabalhar música na infância permite um contacto com os outros e consigo próprio numa base que não é moral, onde não existem as hierarquias de papéis com que as crianças convivem na sua vida. Todas as crianças sabem, na escola, que os meninos são todos iguais, mas que há meninos com mais e menos possibilidades, mais e menos espertos, com mais ou menos dificuldades. E a música permite colocar em valor qualquer pessoa. A arte tem essa possibilidade, de ultrapassar a matriz que cada pessoa ou cada criança leva. E isso é um percurso educativo. Quem sou eu no meio dos outros. Quem são os outros que me rodeiam. O que é fundamental em termos de um sentido de uma comunidade, no sentido de um país. Mas esse trabalho só é válido se for exigente, do ponto de vista técnico. Isto não é incompatível com a escolha da música como uma actividade profissionalizante, que acontece mais tarde.
E: O contacto com a arte, por si só, desde tenra idade poderá ser determinante na formação da criança, da pessoa?
SR: Vivemos num período extraordinariamente consumista. As pessoas consomem muito mais arte do que consumiam. Penso que é preferível consumirem arte a outras coisas que também se consomem hoje em dia. Mas, por si só, não é suficiente. A arte não existe para ser um entretenimento, um bem de consumo. É muito mais do que isso.
E: É essa a filosofia da Escola dos Gambozinos?
SR: Claro. A arte é uma ferramenta do indivíduo e da sua comunidade. Quando usufruímos de uma obra, estamos a apanhar uma quantidade de sinais expressivos, emocionais, mas objectivos, históricos, da relação do criador com o seu tempo. A arte é sempre estética, ética e política. Quando esvaziada desses conteúdos, fica empobrecida.
E: Os Gambozinos não fazem uma selecção artística à entrada das crianças na escola...
SR: Pelo contrário. Todas as pessoas têm a capacidade de fazer música. Se calhar, nem todas têm capacidade para serem músicos. Mas isso, do nosso ponto de vista, é uma coisa relativamente natural. Se a música não é uma linguagem fácil, do ponto de vista técnico e de afluência, é natural que a pessoa que praticou música desde pequena não opte por essa área quando chega aos 11 ou 12 anos. Não fazemos nenhuma selecção porque todas as crianças têm a aprender de si e dos outros. Cantar em conjunto, ouvir os outros cantarem, aprenderem o seu silêncio para que os outros façam música, o silêncio dos outros para quando fazem música. Há uma quantidade de competências que têm a ver com a educação de um povo e que a música trabalha de uma forma extraordinária. A concentração, a disciplina da actividade, o sentido do esforço.
E: Esta educação pela arte poderá ser limitativa, ou seja, fechada num meio artístico? Ou, pelo contrário, significa uma aprendizagem mais abrangente?
SR: Muito mais abrangente exactamente porque não moraliza, não conceptualiza. O lema dos "Gambozinos" é "tantas maneiras de ver e viver", mas este é o lema da arte. Se fizermos um paralelo com a ciência, a ciência estuda a diferença, a arte alimenta-se dela. Estas coisas não fazem sentido em círculo fechado. Ninguém vive em círculo fechado por mais atomizado que esteja e blindado que seja o seu condomínio fechado. As pessoas não estão sozinhas.
E: A vossa escola aposta numa interligação entre as diferentes disciplinas, uma relação que, por vezes, falha no ensino regular, nomeadamente no 1.º ciclo...
SR: Pela experiência que temos e pelo contacto com o 1.º ciclo, entendemos que para se fazer essa interligação é preciso que as equipas dos professores trabalhem muito em conjunto. Hoje em dia, há muito a tendência de se trabalhar na engenharia do ensino: programação, horários. E esquece-se a narrativa. Quais são as ideias mestras, porque existe uma escola, qual a sua função. Essa sintonia e conflito têm de existir regularmente para que cada professor, na sua área de trabalho, possa introduzir um ingrediente aos miúdos.
O que me parece é que cada professor dá a sua aula e depois fazem-se festas em que juntam os retalhos. O que leva a que tanta gente esteja todos os dias no mesmo sítio, durante o mesmo número de horas, sejam alunos, funcionários, professores? Qual a função da escola? Por que se tem de ir para escola? Porque tem de haver professores? Porque é que a escola é importante? Sabemos que a escola é obrigatória, mas é só por que é obrigatória ou porque é importante? Se fizermos estas perguntas a todos os professores de uma escola, as respostas são extraordinariamente discrepantes. E estas questões não entram muito nos discursos oficiais sobre a educação. O que ouvimos falar é sobre as engenharias, como se faz, mas bastante menos do que se faz. A interligação íntima das actividades, da forma como cada professor se exprime, não existe.
E: Os "Gambozinos" têm professores diferentes? Docentes que tenham essa noção do trabalho em conjunto?
SR: Temos, no nosso próprio funcionamento, essa prática. Trocamos de alunos muitas vezes. Mesmo um professor que acaba de chegar, pelo tipo de organização interna que temos, começa a adquirir essa prática. É uma coisa que não acaba até porque estamos, muitas vezes, em desacordo e valorizamos aspectos diferentes em cada momento do trabalho das crianças. Temos uma reunião de trabalho semanal intensa, temos alguns dias por ano sem crianças para discutirmos entre nós. Assistimos às aulas uns dos outros. Portanto, metemos muito a mão na massa do outro. Combinar temas não é suficiente. O que é preciso é que cada adulto vá carburando a sua postura com alguma racionalidade e profundidade. Não temos de dizer todos a mesma coisa, temos é de ter a certeza que pensamos antes de dizer - coisa que não é assim tão frequente.
E: O ensino pela arte tem sido uma vertente esquecida no discurso político?
SR: Fala-se imenso em educação, mas como se a educação fosse uma grande empresa. Aumentou-se a escolaridade obrigatória. Óptimo. Porquê? Qual o objectivo, que tipo de escola, que função tem uma escola para crianças, porque é importante a alfabetização? Há questões que, na minha opinião, nem sequer são discutidas. Hoje temos as novas tecnologias que criam conflitos brutais, ou seja, o tipo de memória das crianças e o tipo de ritmo de aprendizagem têm vindo a alterar-se muitíssimo. A memória, para muitas crianças, é uma espécie de disco externo. Criam-se plataformas para que os pais, os meninos e os professores tenham acesso a saber o que naquela hora e minuto se está a dizer. A educação é muito mais do que isso e as escolas não servem só para ministrar conhecimentos. O discurso político sobre a educação é um discurso da operacionalidade de uma coisa que, em boa verdade, ninguém discute.
E: Não há computadores na Escola dos Gambozinos?
SR: Temos um que já é um pouco velho. Não sentimos francamente necessidade. Não temos nada contra os computadores, apesar de termos a consciência de que todas as novas tecnologias geram vencidos e vencedores. Por exemplo, não é verdade que todas as crianças têm computador. Por outro lado, qualquer criança aprende naturalmente a utilizar um computador, não precisa de um professor, sob o ponto de vista da programação. É uma ferramenta fácil para as crianças.
E: Que as crianças podem aprender mais tarde?
SR: Podem aprender de qualquer outra maneira. A escola não serve para dizer o óbvio. A escola não serve para dizer o que já lá está, mas para acrescentar alguma coisa.
E: Gostam de manter a vossa independência, não aceitam subsídios.
SR: Começámos no pós-25 de Abril. Portugal tem sido um país completamente diferente nestes trinta e tal anos. E a liberdade é uma coisa cara. Colaboramos muitíssimo com os serviços públicos, com câmaras, juntas de freguesias, bibliotecas, mas queremos poder sempre ter margem de manobra para dizer se uma coisa faz sentido, se é ou não um bom momento. Temos a noção de que não faz sentido viabilizar uma coisa à custa de apoios de sistemas que, muitas vezes, contestamos. E, sob o ponto de vista educativo, nós contestamos o sistema.
Fonte: EDUCARE.PT | Sara R. Oliveira| 2010-05-12
http://www.educare.pt
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