PATRONO
Para dar a conhecer o nosso patrono, Dr. Francisco Gonçalves Carneiro, nada melhor do que passar à transcrição do discurso proferido pelo irmão, Dr. Mário Carneiro, aquando da sessão solene para atribuição do nome do Patrono a esta Escola, que ocorreu no ano mil novecentos e noventa e cinco.
«Exmªs. Autoridades
Escolheu o Conselho Directivo da Escola N.º 2 de Chaves, em Casas dos Montes, o nome do Dr. Francisco Gonçalves Carneiro Júnior para a identificar como Patrono, e escolheu-me a mim para falar nesta Sessão, de acordo com os familiares, certamente porque como seu Irmão mais convivi com ele na casa comum dos pais e mais de perto acompanhei a sua vida.
Sou médico há mais de cinquenta anos e por exercício desta profissão estou habituado a controlar sentimentos afectivos, mas não tanto que publicamente consiga dominar os de afecto entre os nossos quatro irmãos, que éramos, para corresponder aos esforços de nosso Pai e de nossa Mãe, e conseguirem o mais velho a Licenciatura em letras, o a seguir a Licenciatura em Direito, eu próprio a Licenciatura de Medicina, e o mais novo Oficial Superior do Exército.
O Dr. Francisco Gonçalves Carneiro Júnior nasceu em Chaves, na Rua Direita, flaviense de gema, pois no coração da velha terra de Chaves que tanto viria a amar.
Terminou a Escola Primária no Colégio de Lamego, na altura considerado como Colégio Exemplar, deste passado para o Liceu Nacional de Chaves (que na altura só tinha até ao 5º ano) pelo que o 6º e o 7º ano já teve que o fazer no Liceu de Vila Real.
Neste Liceu, muito novo, começou a revelar os seus dotes de Escritor fundando e dirigindo um jornal "O Académico" ao mesmo tempo que manifestava publicamente os seus ideais, pelos quais passaria a lutar toda a vida, com o artigo –"Porque sou Republicano". Foi esta a opção política a que se manteve fiel e passaria a marcar. Por essa altura e durante longos anos o lema vigente era "quem não é por nós é contra nós".
Deu entrada na Universidade de Coimbra, frequentando o Curso de Direito. A sua inteligência e modo de estar na vida rapidamente o impuseram a consideração dos estudantes da Academia. Logo no segundo ano era eleito Presidente do Orfeon Académico.
Esta escolha é significativa porquanto na altura o Orfeon era o representante máximo da Academia. O futebol só anos mais tarde lhe disputaria a representatividade, quando a Associação Académica ganhou pela primeira e única vez a Taça de Portugal.
Nesse tempo porém a praxe, embora já não tão agressiva como outrora, ainda era respeitada, e escolher para Presidente dum Organismo representativo da Briosa Academia, como Presidente um estudante que há pouco deixara de ser caloiro diz bem do prestígio que alcançara. Aqueles que o elegeram não ficaram desiludidos porquanto como Presidente, foi aos Açores com o Orfeon Académico numa jornada sensacional, prestigiando a Cultura e renovando os laços entre os açorianos e os continentais afrouxados, e só apertados com a chegada de "São Navio" como era considerado esse meio de transporte e comunicação entre o Continente e as Ilhas. Era o que havia, aviões só muito mais tarde.
Com os Lentes de Coimbra, afectos ao Regime é que as coisas já não eram de bom entendimento pelo que pediu a transferência para Lisboa, onde havia outra abertura, e na sua Faculdade de Direito completou a respectiva Licenciatura.
Coimbra era como uma Vila Universitária em que Mestres e alunos se conheciam e sabiam das cores políticas de cada por mais camufladas que fossem.
Regressado a Chaves, depois do Estágio respectivo para Advocacia em Lisboa onde poderia tentar a Política dados os seus dotes de inteligência e cultura se aderisse ao Regime, mas não, abriu Escritório na casa paterna e iniciou a sua vida de Advogado sempre atendendo ricos e pobres sem olhar ao lado económico, com a maior dignidade.
Teve grande prestígio na Advocacia e o seu nome atraía jovens Advogados que o escolhiam para seu Patrono de Estágio, alguns dos quais hoje ocupam até dos mais altos cargos da Magistratura Portuguesa. Os seus trabalhos eram de grande meticulosidade jurídica e de grande forma literária.
Casos complicados iam-lhe parar às mãos: - alguns alunos contra decisões do Governo (como o caso dos Baldios); - ou da Autarquia (como aconteceu comigo próprio na Direcção das Caldas de Chaves); - ou das Autoridades Eclesiásticas (como numa decisão do Bispo de Vila Real contra um Abade de Chaves); - ou de Organismos Oficiais (como o caso do confronto do Desportivo e do Lourosa provocando rebelião popular), e muitos outros em que tomava a defesa sem cobrar honorários, só para repor a Justiça nos casos em que os seus concidadãos eram ofendidos, ou a identidade e o futuro da cidade de Chaves eram postergados. Como exemplo: - contra o primeiro plano de Urbanização de Chaves que enchia a veiga de ruas, praças, campo de futebol e até um cemitério, publicando um opúsculo sobre a Urbanização de Chaves que é considerado uma das primeiras publicações sobre Urbanismo em Portugal, e levou a citação deste trabalho pelos Organismos Oficiais na reprovação do projecto.
A luta pela Justiça, a Cultura e a Liberdade levava-o a ser como Professor duma Universidade Livre, embora fugazmente fosse mais tarde Professor da Cadeira de Introdução à Política, na Escola de Magistério de Chaves. No seu Escritório, nos Cafés, nos Restaurantes, nos largos, ruas ou na Ponte Romana era vê-lo sempre rodeado de amigos e de jovens com os quais tão bem dialogava, pois era um comunicador por excelência criando Escola e incentivando a formação do grupo Amigos de Chaves de que foi Presidente, publicando em colaboração o seu primeiro e único Boletim.
Na Imprensa os seus muitos artigos eram lidos por todos com grande apreço, e os seus discursos de apresentação de Individualidades ou Organizações Culturais que trazia a Chaves, por ocasião de Colóquios ou Comemorações, eram aplaudidos entusiasticamente dadas as suas qualidades de orador.
Famosas as Comemorações dos 1500 anos do aprisionamento do Bispo Idácio na sua Sé de Aquae Flaviae que trouxe a Chaves as mais altas individualidades culturais da Galiza e entre elas – o Professor Otero Pedrayo, um grande de Espanha. Foi célebre localmente na altura a polémica jornalística que manteve com um Professor do Liceu Nacional de Chaves sobre os clássicos do Teatro Português, a propósito de assim ter considerado Gil Vicente e não só os clássicos mais recuados da História Antiga, que depois publicou em separata. E o artigo publicado aquando da inauguração do novo Tribunal de Chaves em que considerou ser o 1º réu o Governador da Praça Forte de Chaves quando cercada pelo mestre de Avis e D. Nuno Álvares Pereira, cena bem pintada a fresco na Sala de Audiências sobre "o respeito pela palavra dada", o qual também não agradou aos Governantes.
Mas não só polémicas, também como verdadeiro Democrata, Amigo do Povo, conciliador, sociável, de cada conhecido fazendo um amigo e um admirador respeitado, apelou pela palavra e pela escrita ao bom relacionamento que não existia entre os Concessionários de Vidago, Pedras Salgadas e Chaves e a criação do Complexo Termal do Alto Tâmega com Chaves, Vidago, Pedras Salgadas, Carvalhelhos e Verin, que ainda vamos a caminho de conseguir.
Assim foi um Pioneiro em várias ideias que lançou e só décadas depois aceites:
- Num Colóquio sobre Democratização do Ensino (ainda na vigência do Estado Novo) defendeu a tese da criação de Escolas Técnicas práticas e não só do Ensino Teórico como havia, atendendo a que as três Universidades existentes e incompletas ( a completar) eram suficientes – se as Províncias Ultramarinas (ou Colónias como se considerassem) se tornassem independentes. Então o que era necessário eram Cursos intermédios – o que só agora começa a ser posto em prática e tanta falta tem feito. Deste tema fez a publicação na altura.
- Quanto à solução do gravíssimo problema entre o Continente Português, Angola, Moçambique, Guiné e outras Regiões, tinha a opinião que se deveria resolver com eleições livres cá e lá, o que só agora se fez cá e anda a tentar lá, nessas outras Regiões, o que não era aceite nem compreendido por outros políticos portugueses.
Foi nesta luta pela Liberdade que o Senhor Dr. Francisco Gonçalves Carneiro Júnior mais viria a sofrer. Sempre na primeira fila pela Liberdade quando havia eleições, lutou contra a "paz podre" em Chaves (então considerada Praça Forte do chamado «Reviralho») pela candidatura à Presidência da República, entre outros, do General Norton de Matos e do General Humberto Delgado fazendo parte da Comissão de Eleição, a qual provocou em Chaves o levantamento popular mais extraordinário por apoio a uma candidatura de que há memória local, mas não desordeiro, nem anárquico pois o seu lema era Tolerância, Paz e Liberdade, e conseguir a vitória pelos votos e não pelas armas em luta fratricida.
O levantamento popular de apoio à candidatura do General Humberto Delgado provocou injustamente a sua prisão pela PIDE e a sua leva para o Porto com outros três elementos da Comissão de Eleição.
O Dr. Francisco Gonçalves Carneiro Júnior era um idealista generoso, não esquecendo o que sofreu e o regime de terror que à volta se formara para intimidação, e sabendo que outros lutadores pela liberdade sofreram muito mais, numa atitude de sereno humor que nunca perdeu, mandou gravar na caneta que usava para assinar os seus documentos jurídicas e outros as palavras "férias com Salazar"...
Como independente, não oportunista, era a hora no Post-Revolução do 25 de Abril de puxar pelos "pergaminhos", mas considerou que não era aquela "a sua revolução" e não apareceu em Comícios reivindicativos e de assalto ao poder. Pintaram-lhe uma noite a cruz suástica na parede do escritório como aos servidores e servidos pelo regímen de Salazar, ofensa que considerou gravíssima e desmoralizante, a ele que tanto lutara no chamado "Contra" toda a sua vida.
Férias nunca teve, porque o seu espírito estava sempre a trabalhar, até fisicamente como acontecia no Castro de Curalha com Arqueólogos, no seu restauro (o que está publicado), ou acorrendo ao local logo que aparecia uma "pedra com letras", abandonando o escritório mas assim salvou entre outras uma ara famosa dedicada a Júpiter Óptimo Máximo pelo Município de Aquae Flaviae, digamos, o documento revelador com o Padrão dos Povos da Ponte Romana e a base do monumento à Concórdia, que Aquae Flaviae (a actual Chaves) já era Município nos tempos do Império Romano o que levou a considerar Chaves dos mais antigos Municípios de Portugal – e daí a sua ideia que já não veria realizada das Comemorações dos XIX Séculos do Município de Aquae Flaviae e que outros realizaram.
Entretanto foram entregues ao Dr. Francisco Gonçalves Carneiro Júnior para inventariação e ordenamento do espólio existente nos baixos dos chamados Paços dos Duques de Bragança, melhor, Casas do Castelo do Duque de Bragança, melhor, Casa da Guarda Principal, (pois não fora habitação do Duque), e era um amontoado de pedras desarrumadas e armazém de recolha de móveis desirmanados e sem uso que para ali eram amontoados a esmo por ordem da Câmara. Este edifício da Guarda Principal, que deu nome ao largo, sofrera a sobreposição de dois andares, o último do qual entaipava a torre de menagem e fora demolido a sua distância.
Deu-se ao trabalho de dar ordem às aras romanas, brasões, e muitos objectos dispersos, agora classificados, passando a haver um Museu da Região Flaviense visitável. Foi uma obra importante porque na altura havia, como agora, a ideia de centralizar tudo nas capitais – foi salvo assim para Chaves o mais rico Museu de Epigrafia existente em Portugal.
Hoje tem o seu nome gravado em pedra mármore colocada oficialmente na parede interior do Museu.
Entretanto falecia no Porto por acidente vascular cerebral, e no seu estado confusional queria levantar-se para seguir para a Régua onde tinha um caso jurídico duns seus clientes, a resolver no Tribunal Judicial.
Do seu espólio literário citamos três livros que publicamos postumamente:
- "Chaves, cidade heróica", onde entre outros capítulos se destaca a descoberta por ele dos traçados dos Caminhos de Santiago por Trás-os-Montes passando por Chaves.
- "Igreja de Santa Maria Maior de Chaves" com seu pórtico românico entaipado por parede de pedra e descoberto a suas instâncias pelo restauro que se fez, e descreve: a igreja construída no local onde se erguera a Sé do Bispo Idácio onde fora preso pelos Suevos na sua Invasão no Século V, facto rememorado em lápide colocada na parede exterior da igreja por sua iniciativa.
- "Temas Flavienses", recolhidos na Imprensa um dos quais um artigo premiado e publicado na revista "Século Ilustrado", de Lisboa, e onde é narrado o episódio das Invasões Francesas no qual um camponês da região se comporta frente aos invasores franceses como a padeira de Aljubarrota frente aos invasores castelhanos.
- Mas hoje vai ser mostrado um livro da sua autoria até agora desconhecido "Malícia de Amor" um livro de contos, que foi o seu primeiro livro publicado e nunca posto à venda, jazendo encaixotado como quando veio da tipografia; e porque só agora? A publicação era do autor e neste caso seria o próprio a promover a sua divulgação. Ora em Chaves na altura havia apenas uma Livraria e estava desavindo com ela. Aliás mercado livreiro era praticamente nulo limitando-se à venda de livros escolares. Do boletim "Estudos Flavienses", editado de suo e lançado mais tarde, apenas foram adquiridos seis exemplares. Teria pois a "Malícia de Amor" ser lançada nos grandes centros para rentabilidade económica do investimento. Mas este assunto não era com ele e a promoção pessoal também não, pois tinha o lema "adiar a solução de uma dificuldade é meio caminho andado para a resolver".
Outros problemas foram surgindo e os anos passando e as malícias da década dos vinte anos de idade passaram a ser outras, nas décadas dos trinta, quarenta e cinquenta anos. E o livro? Aparece hoje para que se não perca.
Os textos dos seus livros podem servir de modelo literário na escola, pois estão escritos num português exemplar, num estilo elegante e sugestivo de pistas reveladas a outros que já as prosseguem.
O Patrono de uma Escola deve ser um Homem de Cultura.
No caso de Chaves, agora que tanto se fala em descentralização Cultural e em Área Escola, é justo que seja o nome dum Homem que tenha amado a sua terra, que tenha contribuído para a elevar culturalmente, que a tenha servido e sem se servir dela, que podendo abandonar os seus Familiares, Amigos e Conterrâneos tenha ficado solidário com eles, vivendo as suas dificuldades ajudando-os a resolvê-las e incentivando-os a agrupar-se e a lutar pelos mesmos ideais de progresso sócio-económico e elevação cultural da nossa cidade e Região.
O Dr. Francisco Gonçalves Carneiro Júnior deixou-nos o exemplo dum Homem de Cultura, independente, partidário da Liberdade, investigador da História mas não agarrado ao passado porque progressista, fiel a si próprio e dentro do espírito de Justiça que sempre o norteou não se deixando subornar por qualquer tipo de corrupção e como Advogado, atendendo as questões dos mais humildes, não vivendo com a mira no dinheiro.
Morreu pobre, mas deixou-nos o seu exemplo de que há valores mais altos pelos quais se deve lutar, deixou-nos os seus livros e, acima de tudo, deixou dois filhos que tanto amou – um filho licenciado em Medicina e uma filha licenciada em Direito que honram a sua memória, como Pai e como Educador.
Que guardou para si o Senhor Dr. Francisco Gonçalves Carneiro Júnior?
À sua vida bem se pode aplicar o provérbio transcrito da língua sagrada primitiva de há milénios: - "Tudo o que podemos guardar nas nossas mãos mortas e frias é aquilo que tivermos dado". Se a língua é sagrada e o provérbio é verdadeiro há milénios, dele também podemos dizer que guardou consigo uma grande porção de felicidade.
Em nome de toda a Família que de tal me encarregou, termino com os nossos agradecimentos a esta Escola e Autoridades pela Justiça feita. Bem hajam.
Mário Gonçalves Carneiro
Chaves,1995»
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